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Expografia e uma incursão ao belo

Uma visita ao Museu Abelardo Rodrigues, Salvador

Expografia e uma incursão ao belo: uma visita ao Museu Abelardo Rodrigues, Salvador.

Profa. Dra. Suely Moraes Ceravolo

Depto. de Museologia – FFCH /UFBA

Salvador, 5.01.2007

Fui a um museu. Nada de mais uma vez que minha matéria prima de trabalho são os museus e algo maior ou mais amplo, ou mais extenso; um pequeno território do conhecimento denominado Museologia.

Vou comentar uma exposição: "A corte celestial: 25 anos de Arte e Devoção" do Museu Abelardo Rodrigues, bem no coração do Pelourinho. Mas, antes, um pouco formal, falo sobre conceitos e termos. Isso é para demonstrar que há, por detrás de expositores de museu, muito mais do que o ato de mostrar algo. Há uma museografia, expologia e uma expografia que são, ao mesmo tempo, conceitos - e não palavras - que nos remetem diretamente a essa área do saber (a Museologia), e também são denominações para certas atividades que fazem parte do planejamento museológico. Ou seja, há uma teoria e um programação alicerçando-as. Ah! sim, por favor, devemos usar Museologia com "M" em maiúsculo. Faço questão e faz diferença. É bom explicar para não se ter dúvidas ou, pelo menos, diminuí-las.

Um autor holandês, Peter van Mensch relata, numa tese, que a palavra 'museografia' foi criada – sim, porque criamos palavras -, antes da palavra 'museologia'. A primeira data do século XVIII, e teria sido criada por C.F. Neickelius em 1727; a segunda no século XIX, por P.L.Martin em 1869. Posso dar a referência: isso está em The museology discourse, páginas 2 de 14 na tese de Peter van Mensch defendida em 1992, denominada Towards a methodology of museology. Zagreb, Universidade de Zagreb (http: www.xs4all.nl/~rwa/boek01.htm. 11/01/2000).

A ênfase aqui em 'palavra' tem sua razão. As palavras são plásticas, moldáveis; os conceitos não, ou são em muito menor grau. Pode-se dizer que as palavras se encaixam em variadas situações comunicativas na linguagem oral, ou mesmo na escrita a depender da circunstância. A palavra 'casa', por exemplo, se usada nesse exato momento entre nós levará a uma idéia de casa provavelmente diferente uma da outra. Eu penso 'casa', você pensa 'casa', mas não temos a mesma imagem e conceito de casa em nosso repertório mental. Livre, a palavra 'casa' em minha mente cria algo com paredes, jardins e palmeiras.

Será diferente entre dois arquitetos que conversam entre si uma vez que são especialistas e, possivelmente, formarão uma imagem de 'casa' a partir de referenciais e conceitos que aprenderam na sua área de formação. Teríamos algo como: uma edificação, uma volumetria, com cobertura, telhado em duas águas, e assim por diante (os arquitetos me desculpem a simplificação!). O referencial deles, portanto, vem de um repertório técnico de sua especialidade. O meu conceito de 'casa' vai diferir em muito do deles; não sou arquiteta. Meu repertório de especialidade é outro.

Nas áreas do saber as palavras, necessariamente, vão tomando modelagem com maior precisão. Elas passam a ser tratadas como se as delimitássemos com uma linha invisível para, ao modo de um cartógrafo, marcá-las com uma dada fronteira. O significado fica mais circunscrito. Por isso, deixam de ser palavras plásticas para se tornarem conceitos monoreferenciais – um só e único significado -, cujas denominações recebem a rubrica de 'termo'. Essa é uma explicação singela mas nos ajuda a compreender que, no plano das especialidades, e em se tratando de áreas do conhecimento acadêmico, usamos preferencialmente termos ao invés de palavras pois trabalhamos com conceitos. Uma área de conhecimento ganha consistência se conta com seu próprio campo conceitual. Ocorre que, a Museologia, abarca uma área do saber é, assim, especial e especializada. Conta com um campo particular de conceitos; conta com teoria ou teorias. É de bom tom conhecê-las já que estamos num campo, território ou horizonte que, por essa razão, merece sua primeira letra em maiúsculo da mesma forma que outras áreas do saber.

Embora a explicação possa aparentar linearidade, no exercício teórico as coisas não se passam de modo tão simples. Houve, especialmente após a década de 70 do século que deixamos para trás, muitas discussões para se descobrir qual seria de fato o objeto de estudo da Museologia. O que não se tinha dúvidas era que, num primeiro momento, esse estudo se referia aos museus. Contudo, a ciência é dinâmica e isso inclui os estudos sociais, e a Museologia, nessa perspectiva, deixou de se ater somente a eles. Essa discussão foi longe especialmente porque a noção de patrimônio cultural se expandiu enormemente. Passou a se conceber museus sem edificação e sem acervo; muita gente se assustou! Passou a se comentar que a sua função primordial é a ação social e educativa, plena de recursos potentes para resguardar a memória social que não é o mesmo que história social sendo que ambas cabem num museu. Enfim, houve e, ainda há muitas discussões; são os limites que estão sendo alargados e melhor delimitados. Como disse, um procedimento natural, indicando que esse território do saber está em movimento, e seus membros são seres saudavelmente inquietos.

Embora essas discussões tenham vigorado a Museologia não 'deixou' os museus; eles são fundamentais para o exercício prático e para a nossa reflexão teórica. Os compreendemos como um dentre os equipamentos de preservação de atuação do profissional museólogo. O que mudou é que deixou de ser o único. Por essa razão a Muselogia não se prende somente a eles.

Volto às palavras. Por 'museografia', palavra que vem sendo apropriada por outras áreas, se compreendia a parte prática da Museologia. Vista por esse ângulo correspondia a um conjunto de atividades de museu incluindo um ciclo de trabalhos obrigatórios e antecedentes à exposição. Falo da pesquisa, documentação, conservação, restauro, planejamento e gerenciamento de reservas técnicas. Como não surgem aos olhos do público são pouco conhecidos o que leva a pensar que, para se abrir um museu, basta se ter uma exposição. Ingenuidade, argumentação rasa e perigosa principalmente se temos como meta concreta e verdadeira a preservação do patrimônio cultural. É preciso um pouco mais de cuidado. É preciso saber que museus requerem estrutura operacional, profissionais competentes, equipamentos, tecnologia, verbas e manutenção e que neles se desenvolvem trabalhos todos os dias. Há muito o que fazer continuamente para que se chegue a uma boa exposição museológica.

Acontece que a especialização, dentro da própria Museologia, vem se aprimorando e se desenvolvendo de tal forma que 'museografia' não cobria mais a necessidade de se explicar que, uma exposição de museu, difere de outras pois requer estudos e procedimentos específicos. Foi então criado o termo expografia cujo escopo inclui tanto a concepção e elaboração de exposições como "a pesquisa de uma linguagem e de uma expressão fiel para traduzir o programa científico de uma exposição". Por necessidade de precisão e de autoria essas informações são encontradas no trabalho "Terminologia Museológica" ou "Thesaurus Museologicus" em desenvolvimento pelo Comitê Internacional da Museologia, grupo da América Latina, por isso ICOFOM-LAN, desde 2000. O thesaurus é um instrumento de controle de vocabulário. Segundo o verbete, o termo expografia foi proposto em 1993 em complemento ao termo museografia. Ele não se refere à decoração, nem a critérios estéticos, e nem à cenografia embora decoração, estética e cenografia possam participar da expografia mas – esse o diferencial para a Museologia -, eles não são os sujeitos centrais dessa apresentação. Usa-se expologia para nos referirmos à parte teórica da expografia, segundo esse mesmo instrumento de controle vocabular.

Como salientei a princípio, é de bom tom se escrever Museologia com "M" e usar seus termos com atenção. E aqui termino a parte mais teórica de meus comentários. Eles foram aqui colocados para bem situar o que vi na exposição "A corte celestial". Posso dizer de outro modo: foram aqui colocados para demonstrar que há uma concepção determinada, e não é uma qualquer. Há uma intenção definida; os equipamentos e mobiliário foram planejados com um objetivo. Vejamos.

Fui captada pela exposição. Se há ali uma cenografia lindíssima que soube associar linhas curvas e retas obtendo o verdadeiro feito de surgir em meio as paredes do Palacete do Ferrão, esses equipamentos expositivos foram me convidando, passo a passo, a muitas surpresas. Me senti dentro de uma caixa de jóias.

Numa suave curva visores me deixam ver - em detalhes -, esculturas sacras. Vitrines em linhas retas, limpas, realçam pequenas obras primas em marfim e altares minúsculos, portáteis, inseridos até em garrafas. Suportes retilíneos tornaram-se expositores para oratórios ou outras peças da imaginária cristã. Uma iluminação pontual incidindo sobre finos tubos em metal e acrílico translúcido me permite abstrair, por um momento, o espaço edificado da antiga construção do Palacete, conduzindo meu olhar para riquíssimas peças em madeira, pedra ou marfim que flutuam no ar. Por isso "vi" as peças, uma a uma, em detalhes e de todos os ângulos. Esplêndido!

Numa outra sala o espelho bem colocado no centro aproxima um detalhe da pintura do teto banhada em luz natural; do detalhe fui ao todo. Fiquei envolta naquela cúpula policromada.

Um conjunto equilibrado de suportes expositivos, num cinza, com luz bem direcionada, faz realçar uma outra série de esculturas sacras; barrocas, me explicou uma amiga. Uma observação: na pausada caminhada por entre os expositores vi, no alto, próximo ao teto, uma abertura. A sábia arquitetura cenarizada deixou visível, de propósito, uma parte da coluna original da casa o que nos prova que, por momento algum, os traços arquitetônicos da construção ficaram escondidos. Penso que o efeito foi ao contrário; os traços marcantes do prédio do museu estão ali se apresentando no decorrer da exposição, acompanhando-a. A arquitetura centenária não me escapou.

Numa seqüência harmônica de expositores chega-se a um salão. Uma única cruz, fixada com precisão, com o entorno livre possibilita a visão direta dessa obra em si. A visão fica direcionada, limpa, objetiva. Posso realmente observar a peça. Dela parto para as vitrines, e como 'vi' bem 'vista' a grande cruz, meu olho ficou treinado para que eu pudesse observar uma série delas em menores dimensões. Então, a própria exposição me ensina a... ver.

 

Me chamou a atenção a composição, as cores, a luz mas, acima de tudo, esse conjunto de mobiliário ao qual denominamos 'suporte', porque só apoio, me permitiu observar - que é diferente de ver -. Agora, com essa expografia pude observar particularidades das peças que são peças-jóias. Observar pela frente, as laterais, o fundo, a volumetria, as cores, os formatos.

Sou ligeiramente dispersiva. Meu olhar comumente vai para o mais amplo. Os detalhes me escapam. Já briguei muito com essa minha forma de ser. Mas deixei de fazê-lo. Essa exposição embora com tão fortes apelos – ainda não disse das cores - , me ajudou a prestar maior atenção uma vez que foi toda elaborada e construída com o único propósito de facilitar, para o visitante, a contemplação desses preciosos artefatos da imaginária cristã. Os realçou; sublinhou o importante.

Deixei me envolver pelas cores; a exposição me capturou também por outros sentidos e ai entrou a emoção. O branco das paredes do Palacete Ferrão, com suas colunas e arcos casou perfeitamente com o azul profundo, quase roxo, pelos pretos e cinzas que vez ou outra a iluminação natural, vinda das grandes janelas, faz identificar.

 

Vamos ser honestos; gostamos do belo. Eu gosto. Vou dizer melhor: me dá prazer ser envolvida pelo belo. Não é à toa que se diz que num museu há uma outra espécie de tempo com força e magia para quebrar o cotidiano. Museus são espaços também oníricos. Por um breve fragmento de tempo, esse algoz impertinente, interfere de outro modo e encontramos um lugar para a mente repousar. Esse foi o papel da casa das musas; mas isto já sabemos.

Me dá prazer entrar numa exposição em que se percebe o projeto expográfico, e o alicerce, a expologia. É força do ofício. Ali se combinam a teoria, a arte, a estética, a prática que os profissionais souberam harmonizar para chegar a resultados.

 

Sai da exposição "A corte celestial" leve. Feliz. Duplamente feliz. Minha alma ficou leve, e eu sorri. Fiquei feliz também por ver uma expografia projetada que usou de recursos para fazer realçar o que de mais belo tem o Museu Abelardo Rodrigues; a sua coleção preciosa de peças da imaginária cristã. Ganhamos nós, o público. Então, pergunto, não é esse o objetivo de um museu e uma exposição? Não é por isso que as exposições são necessariamente renovadas?


Dou os parabéns a equipe que concebeu a expologia e projetou a expografia do Museu Abelardo Rodrigues e, nesse abraço caloroso, entram os sensíveis dirigentes estaduais que dão suporte a esse museu. Exemplar. Essa não menos bela cidade do Salvador ganhou uma exposição primorosa. Vivenciei o belo no prédio, na exposição, nas peças. Uma expressão corrente me ajuda a finalizar – ai está um trabalho "para ninguém botar defeito" -.

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